CRONICAMENTE INVIÁVEL: O CINISMO COMO ASSUNTO E LINGUAGEM
Rodrigo Cássio
A imagem da nação elaborada em Cronicamente Inviável traz o tom exasperado que delineia os enlaces de poder horizontais, ao mesmo tempo diferenciadores dos entes sociais e aptos a arremessarem as diferenças em um conjunto homogêneo, no qual a brasilidade se constitui, por exemplo, sob os braços abertos de um Cristo Redentor que não apazigua nem promove a redenção. Não há saída. Antes disso, até mesmo a bênção divina é um convite para que a destruição persista, e o filme não se esquiva de afirmar essa nacionalidade adoecida, tão próxima de uma esperança vazia quanto mais absorvida pelo ufanismo fácil que, no filme, está ausente. Os galhos retorcidos do cerrado sinalizam um gigante adormecido em berço esplêndido: o próprio Deus das lembranças de infância da personagem Amanda, em uma metáfora que associa o hino nacional ao insuflado – e duvidoso – otimismo da nação.
Cronicamente Inviável destitui a soberania nacional, tão arraigada no discurso televisivo, na medida em que a indústria cultural se sofisticou e o nacional-popular encontrou um novo esteio no país. À luz do que pautou o debate nos anos 1960, a conjugação de povo, nação e desenvolvimento está refletida em seu viés mais ácido, ao gosto de uma irreverência cética que ganhou força no cinema brasileiro dos anos 1970. O povo é uma quimera – dividida entre as massas encantadas pela felicidade moribunda do carnaval ou o público passivo de um programa de tevê. Nas palavras do crítico Ismail Xavier, a totalização da experiência nacional, no filme de Sérgio Bianchi, “põe os brasileiros no laboratório do medo, das hipóteses idílicas ironizadas, dos ódios recíprocos que desmontam o mito da simpatia e do jeitinho, dos comentários ressentidos que azedam a alegria e o carnaval”. De fato, nada parece menos provável, em Cronicamente Inviável, que os desejados benefícios do desenvolvimento, tão perseguidos pelo Brasil moderno – resta apenas a pergunta: o que terá, de fato, desenvolvido na nação que outrora se chamou de Terceiro Mundo?
O impacto que o filme pode causar no imaginário do espectador importa mais que a verossimilhança de suas representações ou a capacidade que pode lhe ser atribuída de discursar sobre o real. Afinal, em última instância, é este discurso sobre o real que mostra seu limite, em uma época na qual as justificativas racionais para ações alienadas são perfeitamente cabíveis – eis o que faz a falsa consciência esclarecida, conceituada por Sloterdijk. Os ‘fatos’ devem impactar, em vez de desvelarem. Os ‘fatos’ não são da ordem da fotografia que acessa o real, mas do pé imundo que se apresenta de maneira corrosiva como a metáfora de uma condição social.
Para dizer de outro modo, “não há limites para a nossa tolerância moral; não há fato ‘real’ o suficiente que uma inversão no sentido do discurso não seja capaz de ressignificar, para livrar a cara dos responsáveis”. Nessas palavras de Maria Rita Kehl, em artigo publicado durante a discussão mais enérgica do filme pela crítica, o fundamento cínico de Cronicamente Inviável é abordado de maneira direta. Pode-se mesmo afirmar que este fundamento é interiorizado no filme, convertendo-se em dado de estilo, e que a falsa consciência esclarecida é um componente indispensável da psicologia rasa de suas personagens. Por essa via, a adesão da obra a códigos estéticos envolvidos historicamente com a manutenção da hegemonia, como é o caso da decupagem clássica e dos princípios de encenação que não abrem mão da ‘naturalidade’ e de certa mímesis como guia, só poderia ser uma adesão ‘contaminada’ previamente pelo cinismo.
*Rodrigo Cássio é doutorando pela UFMG e mestre
em Cinema pela UFG. Foi curador da Curta Mostra Goiás - 9ª Goiânia Mostra
Curtas e do 5° FestCine – Festival do Cinema Brasileiro. Atua como crítico de
cinema e possui trabalhos publicados sobre cinema, arte e filosofia e é colaborador do Cineclube Cascavel.
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