Estabelecidos há mais de 80 anos, os conhecidos cineclubes voltam a fazer parte da realidade cinematográfica do Brasil e reassumem seu papel principal: formar público para o cinema nacional
Gustavo Jönck
Um espaço para ver filmes raros, saber das novidades, trocar idéias e fazer amigos. É mais ou menos assim que se caracteriza um cineclube, conceitualmente definido como uma organização de pessoas com o objetivo comum de assistir e discutir obras cinematográficas. A prática, que existe no Brasil há 80 anos, comemorados em 2008, teve um papel muito importante na formação dos grandes cineastas e estudiosos do assunto. Depois de um período em esquecimento, que durou cerca de 15 anos – desde o fechamento, em 1989, do Conselho Nacional de Cinema (CNC) até a sua reabertura em 2004 –, os cineclubes voltaram a florescer nos últimos anos e novamente começam a cumprir seu papel de formar público de cinema em um país em que grande parte da população sequer tem a experiência de ver películas em salas escuras.
Uma importante iniciativa de inclusão é o Circuito Popular de Cinema, implementado pelo Centro Cineclubista de São Paulo (Cesisp). O objetivo é criar salas de projeção na periferia para promover oficinas de audiovisual e exibição de obras para discussão. A primeira delas foi no bairro do Grajaú, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura. “O projeto se propõe a criar salas populares na periferia das grandes cidades e no interior, visando a criação de novas plateias”, explica Diogo Gomes, presidente do Cesisp. Além disso, a entidade realizou, em novembro do ano passado, o 10º Fórum de Cineclubismo e Audiovisual Comunitário, que teve o tema “Democratização dos meios de comunicação: cinema a um real”, na cidade de Mococa, interior de São Paulo. E, dentro deste fórum, ocorreu também o Prêmio Luiz Orlando para o melhor curta-metragem. O ganhador foi O fim da arrogância, produção que também ganhou o IV Prêmio Cine Favela, organizado pela entidade do mesmo nome (www.cinefavela.org.br) na Cidade Nova Heliópolis, que realiza diversas atividades culturais para a comunidade do bairro, entre elas a exibição de filmes. O Cesisp também organiza o Cineclube Baixa Augusta, na região central de São Paulo. Toda segunda-feira exibe produções cinematográficas, e nas quartas acontece o Chá com Cinema, especial para senhoras, retomado neste mês.
Em parceria com o Cesisp, Jonilson Montalvão é outro exemplo dessa retomada. Ele organiza com seus amigos o Cineclube Lunetim Mágico (www.lunetim.blogspot.com), que acontece nesse mesmo espaço. São jovens que se reúnem todo último sábado do mês para assistir e discutir películas com os diretores. Em algumas ocasiões, são os próprios frequentadores que exibem suas produções.
ITINERANTE
Há também iniciativas de cinema itinerante que se aproximam da proposta cineclubista. O principal exemplo é o Cine Tela Brasil, realizado pela Buriti Filmes, que começou em 1996, com o nome de Cine Mambembe. A diretora Laís Bodanzky e o roteirista Luiz Bolognesi, produtores da Buriti, com uma Saveiro e um gerador elétrico, percorreram 15 mil quilômetros levando produções brasileiras a populações que nunca foram ao cinema. A aventura deu origem ao documentário Cine Mambembe - O cinema descobre o Brasil, premiado pela TV Cultura com o prêmio de Melhor Documentário no Festival Internacional de Documentários de São Paulo. Em 2004, com patrocínio, o projeto deixa de ser mambembe e torna-se o Cine Tela Brasil. Hoje, são duas salas itinerantes com projetor de 35mm e 225 lugares, transportadas em caminhão, oferecendo conforto que supera algumas salas comerciais. A cada semana estão em uma cidade diferente, onde ficam estacionados por três dias, realizando o total de 12 exibições. Em algumas sessões, são oferecidas as Oficinas Vídeo TelaBrasil, nas quais são ministradas aulas sobre cinema com personalidades como o cineasta Cao Hamburger. Já alcançaram um público de mais de 460 mil espectadores em mais de 200 cidades. O programa das sessões pode ser consultado no site www.cinetelabrasil.com.br.
A Livraria Cultura de Recife também organiza o seu cineclube. São exibições temáticas de obras nacionais e estrangeiras, em que frequentemente são chamados profissionais da área para um debate com o público sobre a exibição. Um exemplo é a professora Ana Catarina Galvão, que deu bastante apoio ao projeto. As sessões, que ocorrem no auditório da loja, têm média de público de 50 pessoas. O interessante é que a atividade foi uma iniciativa dos funcionários. Quem começou foi o colaborador Luiz Felipe Uchoa, e hoje conta com a organização de Carlos Antonio Lima. O sucesso da atividade vai ser repetido na unidade de Porto Alegre, onde será implantada em breve, porém ainda sem data definida.
FORMAÇÃO DE CINEASTAS
O resgate da prática cineclubística é importante pelo que ela já fez pelo Brasil. Para se ter uma ideia da força desta prática, basta saber que o Festival de Cinema de Gramado nasceu de um cineclube: o Clube de Cinema de Porto Alegre, fundado por Paulo Fontoura Gastal. Trata-se do único cineclube brasileiro ininterruptamente em funcionamento. Além disso, uma boa parcela de estudiosos, cineastas e autoridades do setor foram ao cinema pela primeira vez por meio de um cineclube na década de 1960 – o de Porto Alegre, por exemplo, foi fundamental para a construção do Cinema Novo. “Antes, como não existiam escolas de cinema, os cineastas, críticos e teóricos começavam, invariavelmente, pelos cineclubes. Esta representação social foi a base para quem pretendia seguir carreira profissional na área”, diz Diogo Gomes que foi presidente do Conselho Nacional de Cineclubes (CNC) entre 1984 e 1986.
Orlando Senna, cineasta, diretor de uma das grandes produções cinematográficas brasileiras Iracema - Uma transa amazônica, e ex-secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura (MinC), também coloca o cineclubismo como fator decisivo em sua formação profissional. Depois de frequentar o Cine Rex, no interior da Bahia, e o Cine Fórum do Colégio Marista, em Salvador, ele também chegou a participar intensamente do Clube de Cinema da Bahia, liderado por Walter da Silveira. “Foi quando decidi que o cinema seria a ocupação central de minha vida. Foi lá que o deslumbramento pelo tema se transformou em profissão, e isso dá uma medida da influência do cineclubismo em minha história pessoal”.
Este envolvimento do cineclube na vida das autoridades que compunham o MinC, a partir da gestão do ministro Gilberto Gil, em 2002, foi essencial para a rearticulação do movimento. “Foi uma das primeiras ações postas em prática pela Secretaria do Audiovisual (SAV) e foi decidida logo depois que assumi a Secretaria e Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura. O início e o deslanche dessa ação foram operados diretamente por Leopoldo Nunes, [na época chefe de gabinete da Secretaria do Audiovisual e atual membro do colegiado da Agência Nacional de Cinema]. Não foram necessárias muitas pesquisas e reuniões, porque o ministro, eu, o Leopoldo e toda minha equipe éramos cineclubistas e sabíamos da importância disso para a cultura audiovisual”, testemunha Senna. Desde então, a SAV e o CNC vêm dialogando para o estímulo ao cineclubismo, o que resultou em dois importantes projetos, o Circuito Brasil e a Programadora Brasil (ver box).
UM POUCO DE HISTÓRIA
O marco histórico do início desse movimento é o Chaplin Club, no Rio de Janeiro, em 1928. Antes disso, em 1917, também no Rio de Janeiro, um grupo formado por Adhemar Gonzaga, Pedro Lima e Paulo Vanderley, entre outros, realizava sessões. Porém, segundo a pesquisadora e organizadora do Cachaça Cinema Clube, Débora Butruce, em seu artigo “Cineclubismo no Brasil”, publicado na revista Acervo, é com a fundação do Chaplin Club que se inicia um movimento sistemático de exibição e discussão de filmes. Seus fundadores são Plínio Sussekind Rocha, Otávio de Faria, Almir Castro e Cláudio Mello, pessoas de prestígio do meio cultural carioca que levaram o cineclube a ter forte repercussão. O Fan, revista oficial publicada durante dois anos, com nove edições, é estudada até hoje por pesquisadores. Mas uma grande contribuição foi o lançamento de Limite, de Mário Peixoto, um dos filmes mais importantes da história do nosso cinema.
Amigo de Plínio Sussekind, Paulo Emílo Salles Gomes foi um importante nome na história do cineclubismo. Ele, junto com Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Antonio Cândido de Mello e Sousa, todos alunos do curso de Filosofia da USP, fundou o Clube de Cinema de São Paulo em 1940. Fechado pelo DIP - Departamento de Informação e Propaganda, órgão criado durante a ditadura de Getúlio Vargas -, o cineclube reabre em 1946, após o fim do Estado Novo, junto com outros em todo o país. Em 1949, une-se ao Museu de Arte Moderna, transformando-se na filmoteca do MAM. Em 1956, o acervo deixa o museu para formar a Cinemateca Brasileira, talvez o mais importante arquivo do cinema nacional. Em 1984, ela se torna órgão do governo federal.
Dentro da história do cineclubismo, pode-se citar a Igreja como um importante agente de ampliação do movimento. Em 1936, criado pela Ação Católica Brasileira, teve início o Serviço de Informações Cinematográficas, no qual eram divulgados boletins com as “cotações morais” dos filmes exibidos no Brasil. Foi tal o exercício da Igreja no meio cineclubístico que ela se tornou a maior tendência no movimento no início dos anos 1960. Foram quase 100 cineclubes sob sua administração.
Segundo a pesquisadora Débora Butruce, a Igreja “pode ser considerada uma das únicas vertentes de perfil claramente ideológico que conseguiu pôr em prática uma articulada proposta para a atividade cineclubística, publicando livros, apostilas, promovendo cursos e formando equipes para difundir seu modo de organização”.
Em 1956, foi criado o Centro dos Cineclubes de São Paulo, na sede da Cinemateca, onde trabalharia na distribuição de filmes, organizando mostras e promovendo cursos.
Depois disso, as criações da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro em 1958, da Federação de Minas em 1960, e de outras agremiações, possibilitaram uma maior organização do movimento, resultando na criação do Conselho Nacional de Cineclubes, em 1962.
JORNADA
Outro acontecimento para o desenvolvimento da prática foi a 8ª Jornada Nacional de Cineclubismo, realizada em 1974, no Paraná, quando os participantes redigem a “Carta de Curitiba”, na qual se comprometem com a defesa do cinema brasileiro. O documento também previa a criação de uma distribuidora alternativa de películas para os cineclubes. A partir disso, foi então criada a Dinafilme, em 1976, pelo CNC. Uma distribuidora que teve seu funcionamento prejudicado pelas invasões e apreensões feitas pela ditadura militar.
Em 1982, foi fundado o Cineclube Bixiga, com Diogo Gomes entre seus criadores. Com muito charme, conquistou grande sucesso de público em São Paulo. Com projeção de 35mm (tecnologia de ponta na época), chegou a superlotar 158 sessões em um único mês. Sucesso que motivou o nascimento de outros, como o Elétrico e o Estação Botafogo.
O movimento teve como marco de seu declínio o fechamento do CNC, em 1989. Vários fatores colaboraram para a decadência do cineclubismo: o enfraquecimento de movimentos sociais e a perda de referências políticas decorrentes do fim da ditadura e da queda do muro de Berlim, além da consolidação do videocassete. Mais importante, contudo, foi o desmantelamento do cinema nacional durante o governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), que teve como marco principal o fechamento da Embrafilme.
A rearticulação do movimento se dá em 2003, por iniciativa da SAV, com a realização da Jornada de Rearticulação do Movimento Cineclubista, durante o Festival de Brasília. Esta comissão fez um mapeamento da atividade no país e organizou a 24ª Jornada Nacional de Cineclubes, realizada em novembro de 2004, na qual foi criado um novo Conselho Nacional de Cineclubes, mas que teve que trocar de nome, em 2006, para Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros, apesar de continuar utilizando a mesma sigla CNC. Mudança causada por um desentendimento de suas lideranças sobre se o órgão seria ou não uma continuidade da organização encerrada em 1989. Hoje, o CNC tem como presidente Antonio Claudino de Jesus e a expectativa é que este retorno das entidades seja definitivo. ©
Para quem se animou a montar e organizar seu próprio cineclube em sua comunidade, é possível contar com o apoio de dois projetos do Ministério da Cultura: a Programadora Brasil e o Cine+Cultura. A Programadora Brasil tem o objetivo de oferecer conteúdo com baixo custo para os cineclubes. Ela oferece filmes clássicos e atuais do cinema nacional, além de muitos documentários, na forma de programas em DVD. Para participar, basta se associar pelo site www.programadorabrasil.org.br. Para cada DVD, é cobrada taxa R$4,00, destinados ao projeto, mais R$6,00 para os direitos autorais, além do custo de envio do material. Para a exibição dos programas, é necessário que sejam feitas sessões gratuitas, o que não impede a cobrança de uma taxa de manutenção. A licença para a utilização dos DVDs dura dois anos. Depois desse período, não é preciso devolver o material, mas, para nova exibição pública, é preciso renovar a licença, efetuando o pagamento mais uma vez. No site é possível ver também os programas disponíveis para exibição. Complementando o trabalho da Programadora Brasil, o Cine+Cultura veio suprir outros dois aspectos: a parte técnica de equipamento e a capacitação de quem o administra. Cada contemplado do programa recebe um projetor digital, um sistema com 4 caixas e uma mesa de som, 2 microfones sem fio, um telão de 3x4 metros, 1 DVD player e uma câmera digital. O Cine+Cultura também se compromete ainda a enviar 12 programas da Programadora Brasil a cada trimestre, e o cineclube se compromete a encaminhar, no final desse período, um relatório sobre as sessões durante dois anos.
Para a capacitação, são organizadas oficinas de treinamento dadas pelo CNC. São aulas práticas e teóricas constituídas por um pouco de história do cineclubismo e do cinema, principalmente nacional; técnicas de como organizar e divulgar uma sessão, entre outros componentes de administração; além do manuseio dos equipamentos cedidos. Para ser contemplado, o cineclube deve estar localizado em zonas rurais ou na periferia dos grandes centros urbanos, pois são lugares que têm menos acesso a exibições audiovisuais. A seleção de contemplados é feita por meio de editais. O novo edital de seleção foi lançado no dia 11 de fevereiro e está disponível no site www.cinemaiscultura.org.br.
São várias as entidades que já se beneficiam desses projetos. Na Programadora Brasil, elas vão além dos cineclubes e englobam universidades, escolas, centros culturais e de apoio à cultura. Já foram distribuídos 330 filmes em 130 programas desde fevereiro de 2007. Até o final de dezembro, eram 672 pontos de exibição audiovisual de circuitos não-comerciais associados ao projeto, 90 deles se denominavam cineclubes. Do total desses associados, metade já havia adquirido DVDs. Os locais de projeção estão espalhados por mais de 350 municípios nos 27 estados brasileiros, uma conquista interessante se comparada com as salas de cinema comerciais, presentes em 450 municípios.
Uma crítica que pode ser feita ao projeto é o fato de a Programadora disponibilizar seu acervo por meio de programas pré-moldados, o que tira a liberdade dos cineclubes de fazer sua própria programação, como explica Diogo Gomes: “Para eles, programar é uma questão de autonomia”. O Cine+Cultura foi uma iniciativa constituída a partir do resgate do projeto Pontos de Difusão pelo programa Mais Cultura Audiovisual, do MinC. Por sua recente criação, ainda atinge um número de projetos menor. O próximo edital do Circuito Brasil visa atender 100 futuros cineclubes. Segundo Frederico Cardoso, coordenador do Cine+Cultura, “pretendemos que sejam pelo menos mais 2000 até o final de 2010”. (GJ)
Fonte: http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc20/index2.asp?page=entretenimento
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